KL Jay: o toca-disco, a agulha e o mixer são a extensão dos meus braços, é tudo a mesma coisa, entendeu?

Entrevistei o Kleber pra edição de agosto da Revista da GOL, numa história sobre discos de vinil. Como o papo com ele foi bem do caralho, resolvi postar a conversa na íntegra.

ps.: a reportagem da GOL pode ser lida aqui.

você treina scratches ouvindo jazz, né?
O tempo do jazz é muito flutuante, muda toda hora, é um jeito de tocar livre, improvisado, e como DJ, quando você treina em cima de um jazz, você pega liberdade também, do improviso; não é aquele scratch quadrado. Existem vários jeitos de se riscar (scratch é risco, sabe?), e se você conseguir somar as técnicas numa track só, é ótimo isso; diferentes scratches num mesmo ritmo, improvisando livre, na verdade você cria; quando você improvisa, você cria, e acaba fazendo coisas sem querer. Quando você faz um solo de qualquer instrumento, você faz esse solo no improviso, você cria jeitos diferentes. Pra mim, me enriqueceu muito como DJ treinar scratch em cima do jazz, porque é um tempo muito…é uma marcação flutuante, e muda toda hora. O pessoal não espera o que você vai fazer, você pega cada vez mais ritmo; é igual jogar bola, é igual o Neymar: você não sabe o que ele vai fazer, você acha que ele vai chutar pro gol e ele toca, tem hora que ele vai tocar e chuta. É o improviso, com jazz é o improviso do improviso. Não sei se eu expliquei muito, a minha explicação foi improvisada também. E sigo muito o Coltrane, porque o Coltrane é foda, ele faz coisas com o saxofone que nem um outro jazzista faz. E é extraordinário, cara, eu ouço muito ele, ele faz umas coisas muito loucas, meu.

é, ele tem uma igreja pra ele…
É, ele é muito foda, muito foda, isso aí é extraterrestre, meu, tá louco.

você se lembra da primeira vez que botou a mão num vinil?
Me veio na mente agora uma vez que eu fui comprar um disco do Zapp com um amigo meu, ele era do Rio, mais velho, ia nos baile tudo, e aí eu sai pra comprar esse disco com ele, que tem a música ‘More Bounce to the Ounce’, que é do primeiro Zapp. Lembro desse dia, fui no sebo, ele comprou o disco, botei na mão, tudo colorido, com a capa meio psicodélica, escrito Zapp, sabe? Assim, é o que vem na mente agora…

teve a época dos anos 80, que você já fazia uns bailes, o Edi Rock também…mas aí teve um estalo que te deu pra começar a investir pesado nisso?
A gente se identifica com alguma coisa, a gente se envolve. Pelo menos eu, e como eu sempre me identifiquei com música, festa, baile, fui me envolvendo no meio. Onde tinha baile eu ia, a gente comprou o 3 em 1, eu gravava fita, você vai se envolvendo e não percebe. Quando você vê, já tá no meio, ali, fazendo festa, tocando. Mas quando eu tive a decisão de ser realmente um DJ, porque até então eu fazia porque eu gostava, porque porra, me trazia felicidade, mas eu não tinha decidido ser aquilo de verdade…eu decidi mesmo ser um DJ quando eu vi o DJ do Kool Moe Dee fazendo scratch na música do Tim Maia, porque até então eu achava que só era possível fazer riscos em discos importados. A gente é ingenuo, né, cara? Quando eu vi o Easy Lee fazer um scratch em cima de um disco brasileiro, aquilo me abriu outra possibilidade, eu vi a possibilidade de fazer scratch em qualquer disco, de qualquer artista, qualquer batida. Isso me deu essa perspectiva, me abriu essa perspectiva, quando eu vi ele fazendo aquilo ali, com uma puta propriedade, puta segurança, eu falei: eu sou isso, eu quero ser esse cara, quero dominar o toca-disco igual ele.

voce lembra qual era o som do Tim Maia?
Ele tocou “Você Mentiu”, ele tava passando o som pro Kool Moe Dee cantar, e aí quando o Tim Maia entrou, cantando “você mentiu tiu tiu tiu”, eu FIQUEI LOUCO, CARALHO!, “que que ele fez?!”, a sonoridade do scratch me enfeitiçou. É louco quando você toma uma decisão, é uma coisa que vem dentro de você, você não pensa, cara, é um instinto. É inexplicável, tem que sentir a coisa pra poder entender…como se fosse uma defesa do corpo, alguém vai te dar um soco e você bota o braço na frente, é uma reação, sei lá, do cérebro com o coração, o sangue, na veia, sei lá, eu sei que era aquilo ali. E tô aí até hoje.

o Edi Rock te de uma letra de mixagem no início, não foi?
O Edi Rock sacou antes, ele é DJ também, tem uma puta noção de mixagem, e aí ele sacou antes como mixava e como fazia o scratch, ele sacou antes. E ele falou pra mim: “É assim que faz”, ele me mostrou a técnica da coisa. Aí eu, “ah, entendi, é você cortar o som, você corta e aumenta o som ao mesmo tempo, mas precisa ter um sincronismo pra fazer isso”. Ele me ensinou, você corta volume, quando você ataca o solo, você abre o volume, e quando voltar o disco você corta, que aí não aparece a volta, é o glup glup…

como você e o Xis tiveram a ideia de organizar o campeonato de DJ?
Eu tive a ideia de fazer o hip-hop DJ porque o campeonato que tinha até então era o de MC, que era mundial e tinha representação no Brasil, mas aconteceu pouco e acabou. Alguns anos e acabou, e aí não teve mais nada de campeonato de DJ. E eu pensei assim, “pô, vamos fazer um campeonato, eu sou DJ, eu tô na rua, eu tô vendo os caras tocar”, mas na época os DJs que tinham destaque eram poucos…e aí eu queria revelar os talentos que eu sabia, que eu tava vendo que existiam. Você vê os caras, “aquele cara é bom, esse cara tem que ir pro mundo”, e aí eu tinha uma puta amizade com Xis, e ele “vamo aê!, tô dentro”, a gente já tinha um nome, na época tinha o ‘Yo’,e acabou tendo visibilidade. O intuito era revelar os talentos que eu sabia que existiam…o DJ quer mostrar o que ele sabe fazer, a arte dele. Durou 11 anos, e aí outro pessoal começou a fazer. Tô fazendo um outro agora que se chama Quartz, entra lá no site, é o quartzriscosebatidas.com.br, com ‘z’ no final do quartz. Tem tudo lá, tem foto, tem as informações do ano passado, tá tudo no ar.

a molecada hoje tem comprado disco de vinil, entre outros motivos, porque sente o peso da música na mão…qual você acha que é o molho a mais no ritual do vinil?
O vinil, meu, ele tem história. Uma capa de vinil, com o vinil dentro, ele é um livro, um caderno. Cada vinil tem uma cor, uma textura, uma memória de quando ele foi comprado, as vezes que você tocou, e isso te alimenta muito. Eu pretendo comprar vinil até o dia que eu morrer, então é louco você olhar pra capa e saber qual música tocar, você já ir direto naquela faixa. Entendeu? Pra mim, o vinil, o toca-disco, a agulha, o mixer, são a extensão dos meus braços, do meu corpo. É tudo a mesma coisa, entendeu? Eu durmo com meus discos, eles tão perto da minha cama, no espaço que eu durmo, que eu almoço, que eu bebo, eles estão ali comigo, são meus companheiros. Cada DJ vai te dar uma interpretação, porque o vinil tem essa energia, que é a soma da capa, da cor, do peso, da textura, né?, do ano que você comprou, do dinheiro que você gastou, tudo isso…é uma energia.

em que pé está a produção do Na Batida vol. 1?
Tô mixando ele, tô muito feliz com o resultado, tem muitas músicas boas, é um disco que tô fazendo com muita liberdade. Antes de qualquer coisa, ali sou eu, todas as músicas que estão ali sou eu. Vai sair no final do ano, vários MCs, muita gente boa cantando, é um disco diferente, autêntico, diferente dos demais. Eu quero dar o nome de “No Quarto Sozinho”, porque a interpretação é diferente de “Sozinho no Quarto”, entendeu? ‘Sozinho no quarto’ dá aquele entendimento de que você está na solidão, e ‘no quarto sozinho’ é uma outra interpretação, é que ali é o seu lugar, é onde você se encontra, entendeu? No quarto sozinho.

 

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